Refutando a Supremacia Papal - Parte II

Papa Francisco


Na primeira parte que introduz a esta serie de artigos (veja aqui), abordamos o fato de que muito antes da Reforma Protestante rejeitar os apelos romanos de Supremacia Papal, a Igreja Oriental, já vinha rejeitando há séculos qualquer que seja o argumento romano para sustentar a validade da jurisdição universal de Roma e seu bispo sobre toda a igreja. Que isso não é uma questão de rejeitar a tradição da igreja muito menos o que sempre fora a catolicidade eclesiástica, é entendido a partir de um honesto e sério exame dos escritos dos antigos pais da Igreja, a quem Roma recorre para sustentar suas reivindicações papais.

O que na verdade valida o papado, não é o testemunho da igreja antiga mas sim uma péssima interpretação da história eclesiástica e tortuosas análises favoritistas, realizadas e defendidas a partir de um revisionismo tendencioso e desonesto, desconsiderando completamente o contexto histórico dos próprios escritos a que se recorrem.

Sobre isso, o historiador Garry Wills, um dos mais conhecidos e prolíficos pensadores católicos norte-americanos da atualidade nos diz que:

" a Santa Sé acumula em seu currículo um formidável acervo de tortuosa interpretação das Sagradas Escrituras, de distorcidas visões da história eclesiástica, de  lamúrias hipócritas e deslavadas mentiras."
(Papal Sin - Garry Wills - citado em The New York Times)
Uma entrevista com o historiador católico Garry Wills, pode ser vista aqui : "Mark Lilla pergunta: É possível ser católico e crítico do Papado?"


Contudo, para a maioria dos leigos e alguns apaixonados romanistas, tais declarações soam como blasfêmia e heresia contra a igreja. Todavia ao analisarmos a história da igreja, iremos constatar como outrora constatou Ignaz Von Dollinger, que, a maior autoridade em assuntos eclesiásticos sempre foram os concílios universais da igreja onde todos os bispos inclusive o romano, deveriam se submeter as suas decisões. Dollinger no seculo 19 era a maior autoridade dentro do catolicismo romano em questão de história eclesiástica, e ousadamente ele defendeu a supremacia do conselho geral da igreja, e se posicionou contra a doutrina da infalibilidade papal por motivos históricos. Pois é um ensinamento que não tem validação na história muito menos na tradição da Igreja.

No artigo anterior vemos que as alegações de supremacia papal baseada em escritos de Inácio de Antioquia, Leão I, Agostinho de Hipona e João Crisóstomo, não se corroboram nem se sustentam a luz de uma analise honesta. E vemos que essa não só é a opinião de historiadores católicos imparciais e apologistas protestantes, mas sim também é a posição da Igreja Oriental.

Abaixo vamos analisar mais algumas citações em que os romanistas tentam demonstrar o indemonstrável, mas, ignoram que ao se examinar todo o contexto, suas reivindicações aos antigos pais da igreja ao invés de apoia-los, na verdade os refuta. Alguns pais da Igreja sequer tinham qualquer consideração acerca de uma suposta supremacia romana.

Por exemplo...


Basílio, o Grande

Basílio Magno, assim como Crisóstomo, também apoiou Melécio(ou Meletius) contra o candidato de Roma ao episcopado de Antioquia. [ Whelton, M. (2006), Papas e Patriarcas: Uma Perspectiva Ortodoxa em Católica Romana Claims , (Concillar Press; Ben Lomond, CA), p120 ]

Escrevendo ao Conde Terêncio(ver aqui) Basílio disse:

"Mas um novo rumor chegou a mim que você está em Antioquia, e estão negociando em conjunto com as principais autoridades. E, além disso, eu ouvi dizer que os irmãos que são do partido do Paulino estão entrando em alguma discussão com Vossa Excelência sobre o tema da união com a gente; e por "nós" eu quero dizer aqueles que são simpatizantes do abençoado homem de Deus, Meletius. Eu ouço, além disso, que os Paulinianos estão levando uma carta do ocidente(de ROMA), atribuindo-lhe o episcopado da Igreja em Antioquia, mas falando sob uma falsa impressão de Meletius, o admirável bispo da verdadeira Igreja de Deus.
Eu não acuso ninguém; Eu rezo para que eu possa ter amor a todos, e especialmente, àqueles que são da família da fé; Gálatas 6:10, e por isso felicito aqueles que receberam a carta de Roma. E, apesar de ser um grande testemunho em seu favor, eu só espero que a verdade seja confirmada pelos fatos. Mas eu nunca serei capaz de ignorar Meletius baseado nestes motivos, nem esquecer a Igreja que está sob ele, nem trata-lo como pequeno e de pouca importância para a verdadeira religião, por questões que deram origem à divisão. Eu nunca irei consentir a ceder, apenas porque alguém está muito entusiasmado com uma carta recebida de homens. Mesmo que tivesse descida do céu em si, mas se não concorda com o som da doutrina da fé, eu não posso olhar para isto como em comunhão com os santos ."
 [ Carta CCXIV - Para o Conde Terêncio ]

Percebe-se que de suas cartas Basílio não tinha os papas em alta estima já que claramente ele sequer dá importância a carta enviada pelo Bispo de Roma dando apoio a um outro bispo. E quando Basílio escreveu ao oeste por ajuda (no combate ao arianismo),  ele dirigiu suas cartas para toda a igreja ocidental[Carta XC-Para os irmãos bispos do Ocidente] contudo não especialmente escreve a Roma pedindo ajuda e nem se refere a ela em primeiro lugar. Notem como ele se dirigi a Igreja do Ocidente em sua Carta CCXLIII - Para os bispos da Itália e Gália sobre a condição e confusão das Igrejas:

"Para seus irmãos verdadeiros ministros de Deus amados e muito queridos e companheiros de
mente semelhante, os bispos da Gália e Itália, Basílio, bispo de Cesareia da Capadócia"

Este não parece ser o tratamento que deveria ser dado a PRINCIPAL IGREJA por parte de um bispo inferior não é mesmo? Aliás, Basílio assim se refere ao bispo romano de sua época:

"... Mas o que bem possível poderia vir  da comunicação entre um homem orgulhoso e exaltado, e portanto incapaz de ouvir aqueles que pregam a verdade a ele a partir de um ponto de vista inferior, e um homem como meu irmão, a quem nada como dizer que o servilismo é desconhecido? "

Pelo visto a visão que os antigos pais da igreja tinham do bispo romano, nada tem com a atual mentalidade que os católicos romanos alegam hoje.



Outra cartada romana trata-se do Corifeu.

Corifeu significa "o chefe do coro" ou líder. Apologistas católicos dizem que João Crisóstomo usa o termo para descrever Pedro[Ray, SK, (1999) Sobre esta pedra: São Pedro e o primado de Roma, na Escritura e na Igreja primitiva , (Ignatius Press; São Francisco), pp219-220.].  No entanto, Crisóstomo também usa este termo em relação aos outros:

"Ele tomou os corifeus ( plural ) e levou-os para cima em um alto monte ... Por que Ele toma estes
três sozinhos? Porque eles se destacaram dos demais. Pedro mostrou sua excelência por seu grande
amor a Ele, João por ser muito amado, Tiago pela resposta ... 'Somos capazes de beber o cálice".

"Os corifeus, Pedro o fundamento da Igreja, Paulo, o vaso de eleição". 
[ Contra Ludos et theatra 1 , PG VI, 265. Citado por Chapman, Estudos sobre o início do Papado (Londres: Sheed & Ward, 1928), p76 ]

Argumentam os apologistas católicos que, João Crisóstomo só usa o termo corifeu no singular em relação a Pedro. Isso é verdade, mas os outros pais não restringem o uso do singular apenas a Pedro. 

Basílio por exemplo também usa o termo corifeu referindo-se a Atanásio como o "corifeu de todos".[ Carta LXIX]. 

Ele refere-se também ao bispo de Roma, Dámaso como corifeu, contudo, como o líder dos ocidentais, e não de toda a igreja:

"Além de o documento comum, gostaria de ter escrito a seu corifeu". 

Hesychius(ou Ezequias) de Jerusalém usa o mesmo termo para se referir a Tiago.[ Denny, E., (1912) papalismo: Um Tratado sobre os Créditos sobre o papado, conforme estabelecido no Cognitum Encíclica Satis , (Rivingtons; Londres), p85 ]


Maximo, o Confessor

No artigo anterior foi demonstrado que o Papa Leão XIII citou erroneamente Atanásio. Mas essa não foi a única vez que ele assim o fez citando erroneamente um texto antigo. Whelton afirma que (em sua encíclica Satis Cognitum) Leão XIII ainda cita erroneamente Máximo, o Confessor. [ Whelton, M. (2006), Papas e Patriarcas:. Uma Perspectiva Ortodoxa em Católica Romana Claims, (Concillar Press; Ben Lomond, CA), p125]

Isso é constatado em Defloratio ex Epistola ad Petrum illustrem Maximus, onde Leão XIII aponta Maximos como testemunha de que: 

 "Da mesma forma Maximus Abade ensina que a obediência ao Romano Pontífice é a prova da verdadeira fé e da comunhão legítima. "Portanto, se um homem não quer ser, ou deseja ser chamado, um herege, que ele não se esforce para agradar este ou aquele homem ... mas deve apressar-se antes de todas as coisas para estar em comunhão com a Sé Romana" 
[ Satis Cognitum (http://www.ewtn.com/faith/teachings/papae2.htm) ]

No entanto Edward Denny dando a sua própria tradução e utilizando-se de Aloisium Vincenzi ( em De Hebraeorum et Christianorum Sacra Monarchia, 1875) mostra que as palavras de Maximos dão a Roma um poder que lhe foi conferido pelos Santos Sínodos. Isto está em contraste com a doutrina
católica, e aliás, deve ser notado que, se um Sínodo pode conferir poder, obviamente também pode tirá-lo.

Denny afirma que Vincenzi é "... obrigado pelos fatos a admitir que estas mesmas autoridades a que se refere São Máximo, como elas foram entregues até nós, são um testemunho contra a monarquia papal". [ Denny, E., (1912) papalismo: Um Tratado sobre os Créditos sobre o papado, conforme estabelecido no Cognitum Encíclica Satis , (Rivingtons; Londres), P327 ]


Outra prova citada erroneamente pelos apologistas católicas é a:
Fórmula do Papa Hormisdas

Sob o imperador Anastácio I, as igrejas de Constantinopla e Roma estavam em cisma. No entanto, com a ascendência do imperador ortodoxo Justino I, as duas igrejas poderiam se reconciliar novamente. Justino ordenou o início das negociações e então o Papa Hormisdas emitiu uma fórmula de fé católica ortodoxa que o Patriarca João II deveria assinar se quisesse a reunião das duas igrejas.

"A primeira condição da salvação é manter a norma da verdadeira fé e de modo algum se desviar da doutrina estabelecida dos Padres. Porque é impossível que as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, que disse:" Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja "[Mateus 16:18], não deve ser verificada. E a sua verdade tem sido provada pelo curso da história, pois na Sé Apostólica a religião católica sempre foi mantida imaculada.
 De esta esperança e fé, de modo algum desejo de ser separado e, seguindo a doutrina dos Padres, declaramos anátema todas as heresias, e, principalmente, o herege Nestório, ex-bispo de Constantinopla, que foi condenado pelo Conselho de Éfeso, por Bendito Celestino, bispo de Roma, e pelo venerável Cirilo, bispo de Alexandria. 
Nós também condenamos e declaramos ser anátema Eutiques e Dioscoros de Alexandria, que foram condenados no santo Concílio de Calcedônia, que nós seguimos e endossamos. Este Conselho seguiu o santo Concílio de Nicéia e pregou a fé apostólica. 
E nós condenamos o assassino Timothio, de sobrenome ÆLURUS ["o gato"] e também Pedro [Mongos] de Alexandria, seu discípulo e seguidor em tudo. Também declaramos anátema seu ajudante e seguidor, Acácio de Constantinopla, um bispo, uma vez condenado pela Sé Apostólica, e todos aqueles que permanecem em contato e companhia com eles. Porque este Acácio chegou-se a sua comunhão, ele merecia receber um julgamento de condenação semelhante ao deles. Além disso,condenamos Pedro ["o Fuller"] de Antioquia, com todos os seus seguidores, juntamente com os seguidores de todas os mencionadas acima.
A seguir, como já disse antes, a Sé Apostólica em todas as coisas e proclamando todas as suas decisões, apoiamos e aprovamos todas as letras que o Papa São Leão escreveu a respeito da religião cristã. E assim eu espero que eu possa merecer a ser associado com você na comunhão una que a Sé Apostólica proclama, no qual toda verdadeira e perfeita segurança da religião cristã reside. Eu prometo que de agora em diante aqueles que são separados da comunhão da IgrejaCatólica, isto é, que não estão de acordo com a Sé Apostólica, não terão seus nomes lidos durante os mistérios sagrados. Mas se eu tentar mesmo o menor desvio da minha profissão, eu admito que, de acordo com a minha própria declaração, sou cúmplice com aqueles a quem eu tenha condenado. Eu assinei esta minha profissão, com a minha própria mão, e eu tenho dirigido-a a você, Hormisdas, o papa santo e venerável de Roma "
[Dom Chapman, J., (1923) Estudos sobre o papado precoce , (Sheed & Ward,. Londres), pp213-214]
De toda esta declaração acima, os apologistas católicos enfatizam apenas a  parte do texto em negrito acima. Segundo eles, já que foi estabelecido estar de acordo com este texto, e é um texto de Roma, então Roma é a líder.

Mas o que a Fórmula diz é que, aqueles que estão em acordo com a fé ortodoxa seriam naturalmente de acordo com a igreja de Roma sobre o assunto - que estava afirmando a fé ortodoxa. A aceitação do acordo ortodoxo a Roma é porque ela declarou a verdade e não mais além que isso.

"Para os gregos, o texto do libelo significou um reconhecimento factual que a Igreja Apostólica
Romana tinha sido consistente na ortodoxia, nos últimos 70 anos e, portanto, isso merecia tornar-se
um ponto de encontro para os calcedonianos (aqueles que aceitaram o Concílio de Calcedônia )
do Oriente ". 
[ Meyendorff, J., (1989) Unidade Imperial e divisões cristãs: A Igreja AD450-680 (de São Valdimir Seminary Press; Crestwood, NY) P214. ]

O que mais evidência isso é o fato do Patriarca João expressar sua opinião de que Roma (Roma Antiga) e Constantinopla (Nova Roma) estavam no mesmo nível. O Patriarca mostrou isso quando adicionou ao documento:

"Declaro da Sé do apóstolo Pedro e da Sé desta cidade imperial, somos um."
 [ Dvornik, F., (1966) Bizâncio e do primado romano , ( Universidade Fordham Imprensa , NY), p.61.]

Ao dizer que Roma e Constantinopla estão no mesmo nível, João estava reafirmando o Canon 28 do Concílio de Calcedônia - um cânon que os papas recusam em afirmar por muitos séculos vindouros.


Além disso, apesar de ser uma das exigências na fórmula, o oriente continuou a ignorar as exigências do papa em condenar Acácio. [ Meyendorff, J., (1989) Unidade Imperial e divisões cristãs: A Igreja AD450-680. (St Valdimir Seminary Press; Crestwood, NY) P215. ]

E ainda contrariando a dita Fórmula Romana, o próprio Imperador Justino ignorou o candidato do papa para a sé desocupada de Alexandria e em vez disso...

"... Autorizou a consagração de Timothio III, um Monofisita intransigente".
 [ Davis, LD, (1990), os primeiros sete Concílios Ecumênicos (325-787) Sua História e Teologia (Litúrgica Press, Minnesota), p 223 ]


Mais tarde Teodorico, rei da Itália e também ariano, começou a suspeitar da nova aliança entre Roma e Constantinopla. João I que sucedeu como papa foi enviado a Constantinopla para restaurar as igrejas arianas no oriente. Assim, o "ortodoxo" papa católico foi enviado para instar o restauro das igrejas para os hereges. Este papa após ter um sucesso limitado e falhado, no seu regresso, foi preso e morreu na prisão.[Meyendorff, J., (1989) Unidade Imperial e divisões cristãs: A Igreja AD450-680 (de São Valdimir Seminary Press; Crestwood, NY) P220.]

Portanto, o documento de Hormisdas, não sustenta nenhuma capitulação das igrejas orientais a autoridade romana. Não sustenta sequer a sujeição da igreja em Constantinopla para a igreja em Roma. E o que vemos é que outras igrejas orientais ignoraram a fórmula completamente, como Alexandria que recebeu um bispo monofisista. O que o contexto nos mostra nesta história envolvendo o bispo romano e os orientais, é que  os papas não tinha autoridade alguma sobre a igreja e, na verdade foram obrigados a ir e defender a causa dos hereges diante do trono imperial.









Licenciado e Pós-graduado em História. Bacharelando em Teologia. Cristão de tradição batista e acadêmico em apologética cristã...
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