O Herege e o Santo: Pedro Valdo precursor de Francisco de Assis

Antes dos reformadores, surgiu PEDRO DE VAUX-MILIEU numa aldeia dos arredores de Lião (França). Este conhecido como Pedro Valdo.





Quando digo que católicos tem muita paixão mas pouca fundamentação histórica em suas alegações, NÃO É EXAGERO. Sobre o CISMA OCIDENTAL e a REFORMA PROTESTANTE, eles dizem: "Reforma de verdade fez São Francisco de Assis, ERA CONTRA ALGUNS ATOS DA IGREJA CATOLICA, MAS ELE NÃO DIVIDIU A IGREJA, FOI A ROMA E PEDIU AUTORIZAÇÃO". 

Pois bem, ignoraram que muito antes dos reformadores e na mesma época de FRANCISCO, surgiu PEDRO DE VAUX-MILIEU numa aldeia dos arredores de Lião (França). Este conhecido como PEDRO VALDO.

Ambos vieram após Gregório VI ter imposto a doutrina da autonomia e da autoridade absolutas do papa sobre toda a Igreja e da submissão de todos os cristãos, reis e também imperadores à autoridade espiritual. Algo que foi posto em prática e a todo vapor senão mais tarde por Gregório VII um monástico do movimento cluniacense, cujo nome provém do mosteiro francês de Cluny, fundado em 910, que envolveu as ordens regulares dos beneditinos, dos cistercienses, dos cartusianos, dos camáldulos, além de boa parte do clero e muitos leigos. Os cluniacenses lutavam pelo renascimento da moral da Igreja e pela sua volta à qualidade de guia espiritual. Acreditavam que poderiam obter o resultado desejado reforçando a autonomia e a autoridade do papado. Visto que os bispos eram independentes demais em relação ao papa e dependentes demais do imperador.

Pois bem, Gregório VII por volta de 1073 que fora eleito graças também à pressão do povo de Roma, teorizou e tentou colocar em prática a autoridade absoluta do papa no corpo da Igreja, além da primazia do poder espiritual sobre o temporal. Contudo agora que o objetivo fora alcançado, a "ralé" não tinha mais utilidade e devia voltar ao seu lugar, por bem ou por mal. Após um primeiro momento de moralização e aproximação, a Igreja se afastou ainda mais dos pobres, que, em teoria, deveria ter defendido. 

Passasse um século e então o papa já havia se tornado um soberano sob todos os aspectos, um dos mais poderosos soberanos europeus, que, como todos os outros regentes, tinha pretensões territoriais, firmava tratados, fazia e desfazia alianças. Um soberano que, com as Cruzadas, podia mandar exércitos para a guerra e influenciar pesadamente os reis e imperadores católicos com a arma da excomunhão (que na época incluía, também, a perda de todos os direitos). Manteve isso graças a favores concedidos tanto aos reis (não os excomungando) e aos bispos( deixando que se mantivessem como verdadeiros REIS que geriam com ampla autonomia com relação ao poder estatal, verdadeiros Estados dentro dos Estados e de bônus podiam assumir funções de destaque nas dependências dos vários soberanos europeus).

OU seja, a tentativa de reformar a igreja por parte de Roma e moderada por ela mesma, sempre levou a igreja depois a uma crescente corrupção do clero, cada vez mais ocupado com a gestão dos próprios bens temporais e sempre menos atento à própria missão de guia espiritual, tornando a carreira eclesiástica atraente para as pessoas erradas e pelos motivos errados.- A situação não era melhor no clero menor, formado não raro por pessoas rudes, ignorantes e corruptas, às vezes até analfabetas e certamente menos eloquentes e menos fiéis às Escrituras do que muitos pregadores "hereges".(David Christie-Murray,A História das Heresias. Milão, Rusconi, 1998, p. 152.).

Pra piorar a situação, criou-se o conceito de GUERRA SANTA, CRUZADA CONTRA OS HEREGES que eram considerados inimigos da igreja, e esses hereges eram qualquer um que pregasse o retorno a uma Igreja mais simples, mais pobre, não comprometida com o poder.

Por todos esses motivos, uma massa crescente de pessoas se afastou da instituição eclesiástica para se aproximar dos movimentos tidos por ROMA como "heréticos", cujos líderes eram os primeiros a colocar em prática os preceitos da pobreza e da caridade que pregavam. As heresias medievais, em muitos casos, eram verdadeiros movimentos populares que uniam, aos sermões religiosos, a prática de um estilo de vida solidário e igualitário. E é ai que entra PEDRO VALDO e FRANCISCO DE ASSIS. Ambos queriam se desfazer dos próprios bens e devolver à Igreja sua simplicidade primitiva, mas um é venerado em todas as igrejas do mundo católico, enquanto o outro foi tachado de herege.

Porque?

Ora, ambos foram a Roma pedir autorização do PAPA para exercerem seus atos. Em 1179 Valdo foi a Roma, onde participou do Concílio de Latrão III, por ocasião do qual o Papa Alexandre III deu sua aprovação ao gênero de vida dos pobres de Lião(criado por VALDO). Contudo manteve a proibição de pregarem sem a autorização do Bispo diocesano.

E porque?

Ora, devido os valdenses pregarem contra dentre outras coisas, a corrupção na Igreja romana e ainda atribuírem o sacerdócio a todos os fiéis, homens ou mulheres. Para eles, todo bom cristão tinha o direito de pregar, absolver dos pecados e ministrar os sacramentos. Além de traduzirem o Novo testamento para sua lingua vernacula, eles rejeitavam as orações pelos mortos, as indulgências, a confissão, a penitência, os hinos cantados, a recita de ladainhas em latim e a adoração aos santos. Para eles, o homicídio e a mentira, qualquer que fosse, eram pecados mortais, portanto para eles, eram pecadores também os promotores das Cruzadas. Vejam que isso já no seculo 12, 400 anos antes de LUTERO. 

Os valdenses fizeram tanto sucesso que graças ao zelo missionário, sua crença se espalhou por vários países da Europa Ocidental. Seu sucesso preocupou os vértices da Igreja, que passaram da tolerância relativa à repressão. O próprio Valdo dada a sua insistência em não se submeter ao papado, foi apresentado ao Papa Lúcio III pelo próprio Bispo de Lião, que lançou sobre ele a excomunhão no Concílio de Verona em 1184.

E quem disse que isso intimidou aos valdenses? A popularidade deles foi tão grande, que mais tarde, outro papa Inocêncio III COPIA os valdenses e institui os POBRE CATÓLICOS que, sob o controle da Igreja, tinham permissão para observar todas as práticas valdenses julgadas ortodoxas por Roma.

Bem depois de Pedro Valdo é que surge Francisco de Assis no século XIII. Ou seja, o exito de Francisco se deve ao clamor valdense que apenas não quis se submeter ao papado. E foram mortos por isso. 

Sobre os dois, Dom Estêvão Bettencourt diz:

"A Igreja atingiu o auge do seu prestígio no plano temporal sob o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), que era tido como o Representante do Rei dos Reis. Valdo viveu numa época em que se dava a ascensão desse prestígio perante os soberanos cristãos deste mundo. Essa ascensão assustava muitos fiéis piedosos, que, ao lado dos valores, viam contra-valores nesse poderio da Igreja. Daí a reação de alguns indivíduos e grupos contra o fausto da face visível da Igreja. Pedro Valdo é uma das expressões desse "susto". São Francisco de Assis o foi no início do século XIII, com a diferença porém de que Francisco guardou fidelidade à Igreja, ao passo que os valdenses romperam com ela. O movimento franciscano não travou polêmica contra a autoridade da Igreja, mas ao contrário edificou a Igreja, acompanhado pelos frades ditos "mandicantes" dominicanos, carmelitas e agostinianos.".(fonte: http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?num=1179)

A este respeito Justo L. González observa:

“O encontro entre Francisco e Inocêncio deve ter sido dramático. Inocêncio era o papa mais poderoso que a história tinha conhecido (...) à sua disposição estavam as coroas dos reis e os destinos das nações. Diante dele, o pobrezinho de Assis, a quem pouco importavam as intrigas da época, e cuja única razão para querer conhecer o imperador era pedir-lhe que promulgasse uma lei proibindo a caça de “minhas irmãs, as avezinhas”. Um altivo; o outro esfarrapado. (...) Conta-se que o Pontífice recebeu o pobrezinho com impaciência.
- Vestido como estás, mais pareces um porco que um ser humano – disse, – Vai viver com os teus irmãos.Francisco se inclinou e saiu em busca de uma pocilga. Ali passou algum tempo entre os porcos, revirando-se no lodo. Depois regressou para onde estava o papa, e com toda humildade se inclinou novamente e lhe disse:- Senhor, fiz o que mandaste. Agora te rogo que faças o que eu te peço. [Francisco, acompanhado por uma dezena de seguidores, tinha decidido ir a Roma pedir ao papa, na altura Inocêncio III, a autorização para fundar uma nova ordem.]
Se se tratasse de outro papa, a entrevista teria terminado ali mesmo. Mas parte do gênio de Inocêncio estava precisamente em saber medir o valor das pessoas, e unir os elementos mais díspares sob a sua direção. Naquele momento o franciscanismo nascente esteve na balança, como uma geração antes estivera o movimento dos valdenses. Mas Inocêncio foi mais sábio que o seu predecessor, e a partir de então a igreja contou com um dos seus mais poderosos instrumentos.”
(Justo L. González, Historia del Cristianismo. Miami: Unilit, 1994, Tomo I, p. 510)

Ou seja, devido o favoritismo romano, VALDO foi considerado herege, e Francisco um santo. 

Mas não acaba aí. O favoritismo papal romano continuou, e em pleno seculo 14 em disputa com monarcas europeus, outro papa Bonifácio VIII iria apelar a mais um abuso proclamando a UNAN SANCTAM afirmando que FORA DE ROMA NÃO HÁ SALVAÇÃO. Tanta manifestação de PODER PAPAL de nada valeu para frear a corrupção do CLERO e a imoralidade dentro da Igreja. 

Este Bonifácio VIII inclusive não poupou esforços para perseguir uma ala dos franciscanos criada após a morte de Francisco em 1226 que tinham a permissão de um papa anterior Celestino V para atuarem. E o que dizer do papa João XXII (1316-1334), condenado pelos "fraticelli"(outro ramo franciscano) como o anticristo?

Mais tarde, uns 100 anos depois surgi John Huss na Boêmia também com os mesmos clamores valdenses e com a mesma firmeza dos ORIENTAIS(1054) pregava contra os abusos de Roma. Também Jerônimo Savonarola (1452-1498) que era um frei dominicano que condenava os pecados e a vaidade, e que denunciava os males da Igreja. Ambos condenados as chamas.

Tanto foram os clamores para que Roma retorna-se a ortodoxia do evangelho que de fato e verdade é ela mesma e nenhuma outra, a responsável por todos os cismas, heresias e apostasias da cristandade. E agora querem os romanistas apelarem a Francisco de Assis como um verdadeiro reformador enquanto que Roma continuou depois dele com sua dissoluta posição apostata e abusiva? E ainda querem por em nossa conta essa onda de divisão que veio depois? 

Da unica coisa que nos responsabilizamos é de ter conseguido nos livrar de tão fatídica e anti-cristã subserviência a homens que não puderam sequer PROVAR e MANTER aquilo que abusivamente alegaram por meio de suas proprias doutrinas favoritistas. E FOI GRAÇAS ao papado que produziram-se os dois maiores cismas da história do cristianismo. Primeiro o grande cisma entre as Igrejas do Oriente e a do Ocidente, quando o bispo romano quis impor aos orientais a extra e anti-bíblica doutrina do primado romano, e como os orientais a desconheceram, os quis excomungar. Depois, não levou alguns séculos mais, e a imoralidade tomou conta do clero de Roma e o grande cisma do Ocidente ocorreu, quando outro papa, mais interessado nas artes e na caça do que nos seus labores pastorais, subestimou o clamor da Reforma e deixou que a Igreja se dividisse.


Como curiosidade, ambos tinham tomado para si o mesmo nome:

Leão IX (papa 1049-1054)
Leão X (papa 1513-1521)

Depois de ter tido um papel principal em dividir a cristandade, os papas se dedicaram a manter a unidade do que lhes restou, censurando, castigando ou expulsando os que dissentem. Durante séculos a Igreja manteve a sua unidade sem primado de jurisdição nem de magistério do bispo de Roma. Quando quis impô-los, precipitou o cisma.

Como havia dito, muita paixão, mas nenhuma base histórica sobre suas alegações. É nisso se sustentam as argumentações romanas. Tivesse Francisco se oposto aos abusos papais, certamente teria sido condenado junto com Valdo e outros pré-reformadores.

Att: Elisson Freire



Licenciado e Pós-graduado em História. Bacharelando em Teologia. Cristão de tradição batista e acadêmico em apologética cristã...
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