Sobre os livros apócrifos que são citados em listas, versões ou concílios anteriores a Trento

Analisando fatos que tornam irrelevantes os apelos a tais listas, versões e citações anteriores a Trento que incluíam ou citavam os apócrifos/deuterocanônicos.
Rolo Pergaminho

Introdução aos livros apócrifos antes de Trento

Todos nós já ouvimos a alegação de que o cânon da Sagrada Escritura foi proclamado pelos Concílios de Hipona e Cartago no século 4, e reafirmado no Concílio de Trento no século 16. É apontado ainda que o Concílio de Florença 100 anos antes de Trento, já havia proclamado a mesma lista que incluía os apócrifos/deuterocanônicos e que a própria Bíblia de Gutemberg em 1460 também em sua versão, trazia estes livros. Para além disso apelam a Septuaginta e seus códices antigos que listam os apócrifos/deuterocanônicos entre os demais livros canônicos reconhecidos pelos judeus palestinos e por nós protestantes.

Todavia, ainda que o dito sobre Hipona, Cartago, Florença e versões como a de Gutemberg ou a Septuaginta sejam parcialmente verdadeiras (explico logo mais sobre o porque de 'parcialmente'), na verdade a questão é que, para um católico romano, o Canon não foi infalivelmente decidido até Trento no século 16. Logo, para os católicos romanos, isso implica que durante 1600 anos, ninguém realmente sabia com certeza o que Deus tinha realmente dito, caso realmente tivessem de esperar para uma decisão definitiva, universal e infalível da Igreja Romana.  A Nova Enciclopédia Católica tem honestidade em apontar esta evidência tão ignorada pelos virtuais apologistas católicos:

"Segundo a doutrina católica, o critério do cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento. Antes deste havia algumas dúvidas sobre a canonicidade de certos livros Bíblicos, i.e., sobre a sua pertença ao cânon. O Concílio de Trento definitivamente resolveu a questão do cânon do Antigo Testamento. Que isto não havia sido feito anteriormente é evidenciado pela incerteza que persistia até o tempo de Trento”
(New Catholic Encyclopedia, Vol. I (Washington D.C.: Catholic University, 1967), p. 390).

Resumidamente, é irrelevante se Concílios anteriores a Trento proclamaram decisões sobre o Cânon pois uma declaração oficial, definitiva, universal e infalível só pôde mesmo ser dada em 1546 pelo Concílio de Trento. Logo é inútil um católico apelar a decisões anteriores a isto e, para além disto, vamos analisar outros fatores que tornam irrelevantes os apelos a tais listas, versões e proclamações anteriores a Trento.

Sobre Hipona e Cartago.


Antes do Concílio de Trento no século 16, historicamente, somente os concílios africanos de Hipona e Cartago é que realmente se pronunciaram sobre o conteúdo do cânon bíblico, e incluem os apócrifos/deuterocanónicos. Hipona em 393 dá uma lista, porém os atos deste Concílio foram perdidos, contudo os seus cânones foram adotados quatro anos mais tarde, em 397 no Terceiro Concílio de Cartago. Mas a questão aqui é o fato de que estes sínodos africanos citam como canônicos não só os livros apócrifos aceitos pela Igreja Romana mas também um outro apócrifo, o I Esdras que Trento deixou de fora do cânon que sancionou em 1546. De modo que, evidentemente as listas do século IV e do século XVI não são realmente iguais.

Argumenta-se pela parte da apologética católica (vide John Betts e Art Sippo), que, o referido I Esdras que tanto Hipona/Cartago quanto Roma/Trento tinham em mente seria no caso o canônico livro de Esdras, anterior a Neemias que recebe o nome de II Esdras nos referidos concílios e não um outro livro homônimo reconhecidamente apócrifo e nomeado mais tarde como III Esdras. No entanto isto seria aplicar um anacronismo sob ótica tridentina acerca do que Hipona/Cartago tinham em mente ao listar tal livro.

Explico...

Em Hipona/Cartago, na lista de livros que se tem como canônicos respectivamente são citados dois livros distintos que são I e II Esdras. O II Esdras na verdade são os que distintamente por sua vez conhecemos como os canônicos Esdras e Neemias, já o I Esdras se refere a um apócrifo de 9 capítulos com adições ao livro de Esdras não encontradas no cânon hebreu, além de seções de Crônicas, Esdras e Neemias. Porém, apologistas católicos como Betts argumentam sobre I Esdras, que este definitivamente era o Esdras canônico que os sínodos africanos tinham em mente, e para sustentar isto ele apela a Orígenes, Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Rufinus, e o Concílio grego de Laodicéia. Todavia eles ignoram que estas fontes na verdade entendem I e II Esdras como sendo os canônicos Esdras e Neemias quando tomam por base o cânon hebraico que sequer considera o apócrifo homônimo mais tarde nomeado de III Esdras. Já a versão Septuaginta usada e reconhecida por Hipona/Cartago, esta sim continha I Esdras (apócrifo) e II Esdras (Esdras-Neemias) e mais uma outra adição nomeada por III Esdras (IV Esdras na Vulgata).

Tanto na Septuaginta cristã, como na versão Latina antiga ou Ítala, II Esdras era o que hoje conhecemos como Esdras e Neemias. Por seu lado, I Esdras era o apócrifo que incluía algum material original sobre o retorno de Zorobabel juntamente com outro retirado principalmente de Crónicas e do Esdras canônico. Os cartaginenses assim como Hipona admitiram este livro no seu cânon. Mas na Vulgata que conheciam os prelados de Trento, I e II Esdras correspondiam a Esdras e Neemias (como assim admitiam  Orígenes, Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Rufinus, e o Concílio grego de Laodicéia quando tomavam por base o cânon Hebreu), enquanto o livro I Esdras de Cartago encontrava-se num apêndice da Vulgata como III Esdras, sendo que já havia um outro III Esdras que se tornou depois IV Esdras, que é o chamado Apocalipse de Esdras).

Em resumo, o Concílio de Trento na verdade deixou fora do seu Cânon um livro que tinha sido sancionado como canônico em Cartago. Devido a este erro, os cânones de Trento e de Cartago não são de fato iguais entre si no que ao Antigo Testamento diz respeito. Há que acrescentar que além de invalidar o decidido em Cartago, Trento ainda se contradiz na verdade também com a posição do papa Inocêncio I (dentre outros) que tinha aderido à lista cartaginesa baseada na Antiga Latina.

Em resumo:

1. Os Concílios de Hipona e Cartago listaram os livros de I e II Esdras como canônicos (com base na versão Septuaginta, e passada para a versão Latina).

2. I Esdras é um livro que contém material apócrifo espúrio.

3. Na Septuaginta II Esdras é o que conhecemos como Esdras e Neemias

4. Jeronimo, na Vulgata Latina distinguiu II Esdras como Esdras e Neemias e os nomeou como I e II Esdras .

5. O Concílio de Trento declarou o livro I Esdras da Septuaginta como não-canônico, porque continha material apócrifo espúrio.

6. O Concílio de Trento então passa a chamar o I Esdras da Septuaginta de "III Esdras" mesmo já existindo um livro apócrifo espúrio já nomeado como III Esdras por Jerônimo (Apocalipse de Esdras) que Trento então nomeia como IV Esdras.

7. Trento considera I Esdras canônico (porque agora é Esdras)

8. Hipona e Cartago considera canônico I Esdras (da versão Septuaginta, que continha material apócrifo espúrio, não porque o entendia como sendo o canônico Esdras e sim porque criam na canonicidade da versão Septuaginta).

9. Hipona e Cartago canonizou um I Esdras diferente do que o Concílio de Trento chama de I Esdras que na verdade é parte do II Esdras canonizado por Hipona/Cartago.

Todavia tal assunto se torna irrelevante em extensão sobre se I Esdras de Hipona/Cartago era ou não o Esdras canônico, pois qualquer que tenha sido a decisão destes sínodos, eles não eram vinculativos para a Igreja universal. Isso porque entre os concílios africanos do século IV e o Concílio de Trento do século XVI, há uma grande quantidade de ilustres membros da igreja (desde Jerônimo ao cardeal Tomás de Vio - Caetano) que continuaram a defender, como já Militão de Sardes no século II, e por exemplo Orígenes e Atanásio o tinham feito antes, que o cânon do AT é o Hebraico, sendo que os livros apócrifos eram úteis para edificação e de valor histórico, mas não possuíam autoridade para fundar neles doutrinas.

Sobre a Bíblia de Gutemberg.

 
Que versões bíblicas traziam os livros apócrifos/deuterocanônicos em suas compilações, isto não é nenhuma novidade para nós, o que é ignorado pelos romanistas é o fato de que tais livros estarem numa mesma lista ou compilação não os torna canônicos. Se assim fosse, como fica o caso da própria Bíblia de Gutemberg tão apelada pelos católicos em seus artigos?

Dizem que a Bíblia de Gutemberg continha os mesmos 73 livros que Trento reafirmou. Mas ao observarmos atentamente notamos que a Bíblia de Gutemberg traz na sua edição (assim como outras edições latinas antigas da Bíblia) livros como:
  1. Oração de Manassés (depois do livro de Crônicas);
  2. III Esdras (depois de II Esdras = Neemias);
  3. IV Esdras (depois de III Esdras que vem após II Esdras = Neemias)
  4. Oração de Salomão (depois de Eclesiástico)

Obviamente nenhum destes livros acima incluídos na Bíblia de Gutemberg fazem parte do cânon católico romano e isso se pode ver no próprio link que eles mesmos mostram mas não conferem:
http://molcat1.bl.uk/treasures/gutenberg/search.asp


Sobre a Septuaginta.


Se nos limitarmos aos mais antigos códices da Septuaginta que se conservam, ou seja o Alexandrino (A), o Vaticano (B) e o Sinaítico (Alef), vemos que:

O Códice Alexandrino, do século V, apesar de incluir os livros aceitos pela Igreja Romana, todavia também inclui livros que ela nunca admitiu como canônicos, são eles: I Esdras (III Esdras no apêndice da Vulgata); III e IV Macabeus; I e II Clemente e os Salmos de Salomão.

O Códice Vaticano, do século IV, exclui os livros dos Macabeus e ainda traz o apócrifo de I Esdras, nunca aceito como canônico.

O Códice Sinaítico, também do século IV e sempre citado como o mais antigo pelos próprios cyber apologistas católicos, exclui no entanto Baruc e II Macabeus, mas inclui IV Macabeus e, no NT, acrescenta a Epístola de Barnabé e um fragmento de O Pastor de Hermas, livros nunca tidos por canônicos pela Igreja Romana.

Portanto, a presença dos livros eclesiásticos/deuteros/apócrifos nestes códices não é mais garantia da sua canonicidade do que a de 3 e 4 Macabeus, 1 Esdras, 1 e 2 Clemente, a Epístola de Barnabé ou O Pastor de Hermas que por sua vez não são admitidos por Roma em Trento.


Sobre o Concílio de Florença.


Não existe tal decisão conciliar em Florença sobre o Cânon Bíblico.  Há uma lista de livros do Antigo Testamento com apócrifos/deuterocanónicos que aparece num decreto para os jacobitas emitido pelo papa Eugénio IV, que aparentemente o Concílio aprovou. Mas não é uma decisão própria do concílio. Na verdade a questão do cânon bíblico sequer foi debatida ali, muito menos votada ou aprovada pelo concílio, e no que se refere ao cânon, sequer é reproduzido no Denzinger.

A Enciclopédia Católica admite isso sobre o "O cânon do Antigo Testamento e os conselhos gerais" quando se refere ao Concílio de Florença:
"Em 1442, durante a vida e com a aprovação deste Concílio, Eugênio IV emitiu várias Touros, ou decretos, com vista a restaurar os orientais cismáticos para a comunhão com Roma, e de acordo com o ensino dos teólogos, esses documentos são infalíveis declarações de doutrina. O "Decretum pro Jacobitis" contém uma lista completa dos livros recebidos pela Igreja como inspirados, mas omite, talvez deliberadamente, os termos cânon e canônico. O Concílio de Florença, portanto, ensinou a inspiração de todas as Escrituras, mas não passou formalmente sua canonicidade".
( Reid, G. (1908). Canon of the Old Testament. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved January 27, 2017)

Há de se notar que mesmo após a declaração de Eugênio IV em seu decreto aos Jacobitas dados em Florença, outras autoridades até mesmo católicas continuaram a rejeitar a pertença dos livros apócrifos/deuterocanônicos no cânon.

1 - O cardeal Ximénez de Cisneros produz na Espanha a sua monumental Bíblia poliglota chamada Complutense (1514–1517) e nesta não reconhece os livros apócrifos/deuterocanônicos como INSPIRADOS OU CANÔNICOS mas de boa leitura.

2 - Erasmo de Roterdã, o eminente humanista e importante autoridade sobre a Bíblia, acerca dos deuterocanônicos diz que "foram recebidos para o uso eclesiástico", mas que "seguramente (a Igreja) não deseja que Judite, Tobite (Tobias) e Sabedoria tenham o mesmo peso que o Pentateuco".

3 - O Cardeal Tomás de Vio (Caetano), outra autoridade no assunto também rejeita a ideia de que estes livros sejam canônicos.

Outras alusões aos apócrifos/deuterocanônicos.


Os manuscritos de Qumran no Mar Morto também trazem os livros apócrifos/deuteros, contudo, acharam-se ali muitos outros livros muito apreciados pela comunidade que preservou tais livros. Livros que por sinal nunca entraram no cânon hebreu nem tampouco no católico, como a Regra da Congregação, o Gênesis Apócrifo, o livro dos Jubileus e A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas.

O Novo Testamento faz alusão em Judas a um incidente narrado no livro de Enoque, mas isto não bastaria para conceder status canônico a este livro tardio. Primeiro, porque é possível que ambos dependam de uma fonte comum. O que concede status canônico à tradição de Enoque é precisamente ser citada no Novo Testamento, não ao contrário. E por outro lado este livro em particular, nunca foi aceito por católicos nem protestantes.

Para além disso, no Novo Testamento também há citações de autores pagãos:

1 - Em Atos 17:28, Lucas cita palavras que aparecem no Hino a Zeus de Cleantes e nos Phaenomena de Arato;

2 - Em Tito 1:2, Paulo cita palavras de Epimênides;

3- Em I Coríntios 15:33 Paulo usa outro filósofo grego, Menandro.

Isso não outorga estado canônico a estes autores da gentilidade só por serem citados em livros canônicos, o mesmo silogismo podemos aplicar as alusões que se fazem a livros apócrifos/deuterocanônicos. (Veja-se Poets, Pagan, Quotations from, em Merril C. Tenney, Ed., The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. London-Edinburgh: Marshall, Morgan & Scott, 1963 p. 672.)



Conclusão


Francis Gigot, padre francês, ao fim do século XIX em sua Introdução Geral ao Estudo das Sagradas Escrituras (New York: Benzinger Brothers, 1900), na p. 121 e 122 nos oferece esta abordagem sobre o I Esdras referenciado em Hipona/Cartago:

"O Terceiro Livro de Esdras.

A segunda escrita apócrifa agora colocada no final das edições autorizadas da versão latina é o terceiro livro de Esdras, assim chamado na Vulgata porque os nossos livros canônicos de Esdras e Neemias são conhecidos respectivamente como o primeiro e o segundo livro de Esdras . Nas antigas versões latinas, siríaca e Septuaginta, foi nomeado o primeiro livro de Esdras com sua posição imediatamente antes de nossos livros canônicos de Esdras e Neemias. Este último nome tem grande importância histórica, pois quando os primeiros Concílios e escritores da Igreja falam do primeiro livro de Esdras, eles têm em vista nosso terceiro livro desse nome e quando em suas listas de livros sagrados eles mencionam apenas dois livros de Esdras, o primeiro a que aludem é o nosso terceiro livro, enquanto o segundo corresponde aos nossos livros canônicos de Esdras e Neemias contados juntos como uma obra.

A nomenclatura que acabamos de referir é encontrada nos Concílios africanos de Hipona e Cartago, nos escritos de Santo Agostinho, Papa Inocêncio I e Cassiodoro, e prova sem sombra de dúvida que em um dado momento a canonicidade do terceiro livro de Esdras foi oficialmente reconhecida, pelo menos nas igrejas ocidentais. Por volta do mesmo período, o caráter sagrado deste livro foi dado como certo pelos principais escritores do Oriente, como Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio, Santo Atanásio, São Basílio, São Crisóstomo, que concordam com São Cristóvão. Cipriano, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, e outros no Ocidente, citam como Sagrada Escritura passagens que não são encontradas em nenhuma parte exceto no terceiro livro de Esdras. 

Não é, portanto, surpreendente descobrir que, em presença de tal unanimidade do Oriente e do Ocidente, até o quinto século de nossa era, alguns escritores deveriam ter afirmado que esta obra é verdadeiramente canônica e inspirada. Observam que a Igreja Católica, longe de rejeitá-la positivamente como apócrifa, permitiu seu uso e inseriu-a em sua edição oficial da Vulgata e da Septuaginta; Que de longe a maior parte de seu conteúdo é simplesmente uma duplicata de passagens canônicas no segundo livro de Paralipomenon e no primeiro e segundo de Esdras; E que, finalmente, é difícil ver como o fato de que a escrita em questão deixou de estar em uso desde o século quinto de nossa era, pode invalidar o testemunho positivo anterior a seu favor. (Página 121-122)"

Contudo é apontado em blogs/sites da apologética católica que o assunto sobre o I Esdras de Hipona/Cartago ser diferente do I Esdras aceito por Trento não passa de uma novidade insustentável promovida por Webster, no entanto como vimos acima Francis Gigot é uma fonte mais antiga sobre o assunto e é usado inclusive por pretensos contraditores de William Webster, como Gary Michuta que é invocado por John Betts em suas respostas na análise sobre o apócrifo de I Esdras. 

Fato interessante é que as discussões sobre o assunto já foram abordadas muito antes destes, como por exemplo, por Henry Vincent Pope e Henry Howort  já nos finais do século 19 e inicio do século 20. Os argumentos de Pope são os mesmos que mais tarde seriam usados por  John Betts contra Webster mas falham miseravelmente quando outras evidências e contradições são trazidas a tona por Howort. Como por exemplo o fato de que a maioria das cópias da Vulgata continham pelo menos duas obras complementares, Esdras 3 e Esdras 4, e também a Oração de Manassés e III Macabeus. Se a Vulgata então deveria ser a versão final e oficial, porque os católicos então não admitem estes livros como canônicos?

A opinião de Howorth é que Trento decretou que o único texto da Bíblia a ser seguido era a Vulgata, ainda que a Vulgata anterior inclua os Esdras espúrios (e outros livros também), então há uma contradição com a decisão canônica de Trento e as edições posteriores da Vulgata. A edição de 1590 da Vulgata emitida pelo Papa Sisto omite todos esses livros. Três anos mais tarde (1593), uma Vulgata mais autorizada foi elaborada (edição de Clemente VIII), reintroduzindo III e IV Esdras e a Oração de Manasses, colocando-os em um apêndice, algo muito diferente do que estavam em velhas edições da Vulgata.

Isso nos mostra no caso que a decisão de Trento sobre o cânon, não foi um trabalho meticuloso e bem analisado. Há de observar que em Trento não houve 318 bispos de toda a cristandade, como em Niceia, nem 600 como em Calcedônia, nem sequer 150 como em I Constantinopla. Não, nada mais que 55 bispos, a maioria italianos. E o malfadado decreto sobre o cânon sancionou-se com o voto favorável de menos da metade dos presentes, presentes esses que sequer tinham uma erudição equivalente a tal empreitada.

Ainda sobre o I Esdras.

Howorth, observa que quando os concílios africanos anteriores declararam Hesdrae duo libri (dois livros de Esdras), isso não significa que eram os livros de Esdras e Neemias como Trento fez e como os apologistas católicos de hoje fazem parecer. Ele afirma:

O fato é que a frase Hesdrae libri duo no decreto dos Concílios anteriores não significam os livros de Esdras e Neemias. Esdras e Neemias na Septuaginta e na tradução latina primitiva-hierônica da Bíblia que seguiu a Septuaginta só foram reconhecidos como canônicos na Igreja Latina no final do século IV, e formaram um único livro que no manuscrito grego primitivo era intitulado Esdras B, e que na versão latina primitiva se intitulava Esdras II (p.350-351).( p.350-351 ).
Que os primeiros concílios pretendiam incluir o espúrio I Esdras como canônico é ainda afirmado por estudiosos católicos romanos, como Agostinho Calmet no século 18 (abade de Senones, destacado exegeta francês que escreveu uma "História do Antigo e Novo Testamento e dos judeus"). Ao escrever um tratado especial sobre Esdras A, ele diz:

 "Quando os Padres e os Concílios dos séculos anteriores declararam que os dois livros de Esdras eram canônicos, eles queriam dizer, seguindo as Bíblias atuais que Primeiro Esdras e Neemias formaram apenas um Livro, enquanto eles denominaram Primeiro Esdras o trabalho que é chamado terceiro em nossas Bíblias".
 (Calmet Comm. iii 250 'Dissert, sur le III livre d'Esdras').

Alfred Loisy outro padre francês além de teólogo e filósofo do século 19, foi o estudioso mais ilustre entre os escritores recentes sobre o cânon na França, e ele também diz: 

"Os dois livros de Esdras contidos neles (ou seja, em exemplares iniciais da Bíblia Latina) não são Esdras e Neemias; Mas como na Bíblia grega, o primeiro livro de Esdras é que agora chamamos o terceiro, que foi expulso do cânon; o segundo é composto por Esdras e Neemias".
(Histoire du Canon 92 citado em Journal of Theological Studies, Volume 7 p. 352).


Para além disto, a mesma conclusão de Gigot, Loisy e Calmet, ambos católicos, é tomada por exemplo na Brill's Septuaginta Commentary sobre I Esdras por Michael F. Bird que documenta (link) o uso de  I Esdras como "Escrituras" Cristãs o que mostra ser altamente improvável que Hipona e Cartago não entendessem I Esdras como sendo o Esdras espúrio rejeitado por Trento, dado todo o uso de I Esdras nos primeiros cinco séculos da igreja.

Para resumir, quando Trento discutiu e decidiu sobre sua lista de livros autorizados e canônicos, e viram que os Concílios Africanos só tinham reconhecido dois livros de Esdras, eles saltaram para a conclusão de que esses dois livros no caso seriam aqueles chamados Esdras I e Esdras II em suas Bíblias, ou seja, Esdras e Neemias; Que na verdade não eram. Daí o seu erro, um erro grande, mas natural, que se perpetua no Cânon Romano. Porém, os dois livros de Esdras reconhecidos pelos Concílios Africanos, e por todos os Padres que escaparam à influência de Jerônimo, foram os livros rotulados "Esdras A" e Esdras B nas Bíblias Gregas, ou seja, o primeiro livro de Esdras, que foi remitida aos Apócrifos pelos Reformadores e por Trento, e a obra conjunta Esdras-Neemias. Esta evidência é constatada por qualquer um que examine as primeiras Bíblias Gregas, e as listas canônicas dos padres que não foram influenciados por Jerônimo.

A resposta dos apologistas católicos é dizer que tal alegação sobre I Esdras diferir nas decisões africanas e tridentinas seria uma novidade protestante sem substancia promovida por Webster, no entanto isso se descarta visto que autores muito antes de Webster, inclusive católicos, já abordavam a questão. E, como foi mostrado, I Esdras e II Esdras nos sínodos africanos foram tomados realmente como o apócrifo de Esdras mais os canônicos de Esdras e Neemias, e que a alegação de que padres antigos entendiam tais livros I e II Esdras como Esdras e Neemias, não se corrobora visto que tal referência faziam quando citavam o cânon hebreu  e não a versão latina traduzida da Septuaginta que fora ratificada nos referidos concílios africanos.

Assim concluímos definitivamente que a lista dada por Trento contradiz a lista de Hipona/Cartago e as mais usadas versões anteriores, posto que quando não excluíam alguns dos livros aceitos, incluíam outros jamais reconhecidos por Roma como canônicos, de modo que, invocar Concílios, listas e versões anteriores a Trento para sustentar a pertença dos deuteros/apócrifos no cânon, quando à luz das evidências, mostra que é um recurso falho e um grande testemunho contra a decisão de Trento.

E por fim, sobre os deuterocanônicos a Enciclopédia Católica admite:
"Na Igreja latina, através de toda a Idade Média achamos evidência de hesitação acerca do carácter dos deuterocanônicos. Há uma corrente amistosa para com eles, outra distintamente desfavorável para com a sua autoridade e sacralidade, enquanto oscilando entre ambas há um número de escritores cuja veneração por estes livros é temperada por certa perplexidade acerca da sua posição exata, e entre eles encontramos São Tomás de Aquino. Encontram-se poucos que reconheçam inequivocamente a sua canonicidade. A atitude prevalecente dos autores ocidentais medievais é substancialmente a dos Padres gregos".
(George J. Reid, Canon of the Old Testament, em The Catholic Encyclopedia, 1913 [vide online http://www.newadvent.org/cathen/03267a.htm)

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Para uma maior e melhor analise dos argumentos católicos a favor dos livros apócrifos seguido de uma merecida refutação, recomendo estes dois artigos:


  1. O Cânon do Antigo Testamento ( Em debate)
  2. Refutando os principais argumentos da apologética católica acerca dos livros apócrifos.
  3. SBB publica a Septuaginta e acaba com mentira católica


Att: Elisson Freire




Licenciado e Pós-graduado em História. Bacharelando em Teologia. Cristão de tradição batista e acadêmico em apologética cristã...
(Saiba mais)

11 comentários

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  1. O que os apologistas católicos respondem ao argumento cabal dessa discussão: que o Cânon do antigo testamento ficou sob responsabilidade do povo hebreu?
    1. Eles por favoritismo alegam que este povo hebreu, eram os cristãos conversos a Cristo que aceitaram os deuterocanônicos. Essa pérola é dita pelo Conde Loppeux no vídeo dele que eu fiz questão de responder neste artigo:
      http://resistenciaapologetica.blogspot.com/2017/01/resposta-ao-video-do-conde-loppeux.html

    2. A desculpa deles é tão esfarrapada que há uma impossibilidade temporal aí. Deus, portanto, não conversaria com o seu povo, ou conversaria de uma forma inválida, até o advento de Cristo, e que somente a partir disto poderíamos determinar qual o Cânon do Antigo Testamente, em um período em que Cristo não tinha ainda vindo? Só isso já bastaria para refutar a teses desses malucos, mas a questão é realmente que eles são desonestos e não admitem o tremendo erro que cometeram, de incluir os apócrifos na Bíblia.
  2. Boa Tarde Elisson. Esta semana ainda pretendo publicar um artigo com as citações dos muitos teólogos, bíblias e comentários da época medieval que rejeitavam o cânon posteriormente adotado por Roma. Vi que você citou alguns desses teólogos. Você por acaso já tem algo traduzido? Muito do que vou trazer está no trabalho do William Webster (http://www.christiantruth.com/articles/Apocrypha3.html), mas pretendo trazer citações adicionais. Se você começou a traduzir esse artigo ou algumas dessas citações, peço que me avise para não termos que trabalhar duas vezes.
    1. Olá Bruno, boa noite! Ainda não traduzi esse artigo do Webster para elaborar um em português, fique a vontade para produzir o seu e quando terminar, me avise, posso usá-lo para desenvolver uma possível replica ao que já se tem publicado em resposta ao Webster.
    2. Olá Elisson como vai? Eu já terminei. Desculpe-me a demora em avisá-lo.

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2017/03/o-canon-do-antigo-testamento-de.html

      Não é uma tradução literal. O Webster traz muitas informações biográficas que eu não traduzi por achar que deixaria o artigo grande demais. Eu trouxe citações adicionais também. Fique a vontade para usá-lo no que achar pertinente.
  3. O historiador protestante Philip Schaff, discorda de vc. O cânon foi definitivamente fechado no século IV. Trento apenas reafirmou a canonicidade dos 73 livros devido as objeções inventadas pelo protestantismo contra eles:

    O concílio de Hipona em 393, e o terceiro (de acordo com outro acerto de contas o sexto), concílio de Cartago, em 397, sob a influência de Agostinho, que participou de ambos, fixou o cânone católico das Escrituras Sagradas, incluindo os apócrifos do Antigo Testamento e proibiu a leitura de outros livros nas igrejas, com exceção dos Atos dos Mártires em seus dias de memorial. Estes dois concílios africanos, com Agostinho, dão quarenta e quatro livros como os livros canônicos do Antigo Testamento, na seguinte ordem: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reis (o dois de Samuel e os dois reis), dois livros de Paralipomena (Crônicas), Jó, Salmos, cinco livros de Salomão, os doze profetas menores, Isaías, Jeremias, Daniel, …
    1. É preciso ter cuidado para não ignorar o referido por Phillip Schaff na mesma obra supra citada, para não haver equívocos por parte do católico. Schaff de certa forma não diz que o canon foi definitivamente fechado em HIPONA e CARTAGO sem que jamais houvesse discussão, e sim no sentido que em HIPONA E CARTAGO pela primeira vez houve uma lista oficial circulando e desde então ela não teve muita objeção contrária. Vejamos alguns trechos anteriores a esta citação usada pelo Rafael Rodrigues em seu site Apologistas Católicos que você trouxe acima:

      "No final do século IV, os pontos de vista ainda diferiam quanto à extensão do cânon, ou o número dos livros que deveriam ser reconhecidos como divinos e autoritários. O cânon judeu, ou a Bíblia hebraica, foi universalmente recebido, enquanto os apócrifos adicionados à versão grega da Septuaginta eram apenas de uma maneira geral considerados como livros adequados para a leitura da igreja, (...) Justamente porque esses livros, embora tenham grande valor histórico, preenchem a lacuna entre o Antigo e o Novo, todos originados após a cessação da profecia, e por isso não podem ser considerados como inspirados nem são citados por Cristo ou pelos apóstolos.(...) Na igreja ocidental, o cânone de ambos os Testamentos foi fechado no final do século IV, por meio da autoridade de Jerônimo (que oscilava, no entanto, entre dúvidas críticas e princípio da tradição), e mais especialmente de Agostinho, que seguiu firmemente o Canon Alexandrino da Septuaginta, e a tradição preponderante em referência às epístolas católicas disputadas e o Apocalipse; embora ele próprio, em alguns lugares, inclina-se a considerar os apócrifos do Antigo Testamento como livros deuterocanônicos, tendo uma autoridade subordinada".
      (História da Igreja Cristã, vol. III, Cap. 9)
    2. Que nos diz Schaff? Que os livros aprovados em Hipona e Cartago assim o foram especialmente devido a autoridade de Agostinho, "que seguiu firmemente o Canon Alexandrino da Septuaginta" e que esta Septuaginta continha livros que "eram apenas de uma maneira geral considerados como livros adequados para a leitura da igreja, (...) Justamente porque esses livros, embora tenham grande valor histórico, preenchem a lacuna entre o Antigo e o Novo, todos originados após a cessação da profecia, e por isso não podem ser considerados como inspirados nem são citados por Cristo ou pelos apóstolos". Schaff ainda nos informa que o o próprio Agostinho considerava os apócrifos como tendo uma autoridade subordinada.

      Em seguida no texto de Schaff ele nos dá a lista destes livros aprovados no século IV e que incluíam "dois livros de Esdras" no Antigo Testamento. Henry Howort já nos finais do século 19 e inicio do século 20, observa que quando os concílios africanos anteriores declararam Hesdrae duo libri (dois livros de Esdras), isso não significa que eram os livros de Esdras e Neemias como Trento fez e como os apologistas católicos de hoje fazem parecer. Ele afirma:

      "O fato é que a frase "Hesdrae libri duo" (dois livros de Esdras) no decreto dos Concílios anteriores não significam os livros de Esdras e Neemias. Esdras e Neemias na Septuaginta e na tradução latina primitiva-hierônica da Bíblia que seguiu a Septuaginta só foram reconhecidos como canônicos na Igreja Latina no final do século IV, e formaram um único livro que no manuscrito grego primitivo era intitulado Esdras B, e que na versão latina primitiva se intitulava Esdras II".
      (Jornal de Estudos Teológicos. Volume 7 p.350-351).
    3. Que os primeiros concílios pretendiam incluir o espúrio I Esdras como canônico é ainda afirmado por estudiosos católicos romanos, como Agostinho Calmet no século 18 (abade de Senones, destacado exegeta francês que escreveu a "História do Antigo e Novo Testamento e dos judeus"). Ao escrever um tratado especial sobre Esdras A, ele diz:

      "Quando os Padres e os Concílios dos séculos anteriores declararam que os dois livros de Esdras eram canônicos, eles queriam dizer, seguindo as Bíblias atuais que Primeiro Esdras e Neemias formaram apenas um Livro, enquanto eles denominaram Primeiro Esdras o trabalho que é chamado terceiro em nossas Bíblias". (Calmet Comm. iii 250 'Dissert, sur le III livre d'Esdras').
      Alfred Loisy outro padre francês além de teólogo e filósofo do século 19, foi o estudioso mais ilustre entre os escritores recentes sobre o cânon na França, e ele também diz:

      "Os dois livros de Esdras contidos neles (ou seja, em exemplares iniciais da Bíblia Latina) não são Esdras e Neemias; Mas como na Bíblia grega, o primeiro livro de Esdras é que agora chamamos o terceiro, que foi expulso do cânon; o segundo é composto por Esdras e Neemias".
      (Histoire du Canon 92 citado em Journal of Theological Studies, Volume 7 p. 352).

      Para além disto, a mesma conclusão de Gigot, Loisy e Calmet, ambos católicos, é tomada por exemplo na Brill's Septuaginta Commentary sobre I Esdras por Michael F. Bird que documenta o uso de I Esdras como "Escrituras" Cristãs o que mostra ser altamente improvável que Hipona e Cartago não entendessem I Esdras como sendo o Esdras espúrio rejeitado por Trento, dado todo o uso de I Esdras nos primeiros cinco séculos da igreja.
    4. Portanto, o fato de Schaff não mencionar a distinção sobre os dois livros de Esdras, é irrelevante pois apenas aborda a questão sobre "listas de livros canônicos" no século IV e XVI sem se entreter sobre seus livros que se bem analisados vemos que não são todos idênticos nos dois Concílios. O Rafael deveria se ater na verdade ao fato de Schaff mencionar que a lista aprovada em Hipona/Cartago era baseada no cânon alexandrino e este incluía o apócrifo I Esdras que não é o mesmo que o Esdras canônico. E de fato sim, o canon de HIPONA/CARTAGO permaceu intacto até TRENTO e nele foi alterado. rsrsrs.

      Uma coisa é a lista de Hipona e Cartago permanecer intacta, outra é dizer que ele foi aceita UNIVERSALMENTE, o que não foi, ou que nunca se lhe houve objeção. O que até historiadores católicos discordam DE VOCÊ.

      Pax et bonum!