Sobre o Decreto Gelasiano e a Lista do Papa Dâmaso

Ainda que aceitássemos a suposta Lista de Livros Canônicos do Papa Dámaso como autêntica, poderiam os católicos ainda afirmar que ela é uma lista oficial similar a que foi dada no Concílio de Trento cerca de 12 séculos depois?
Codex-Ragyndrudis


A suposta lista do papa Dâmaso e o decreto gelasiano


Uma suposta lista de livros canônicos atribuída ao Papa Dâmaso em um suposto Sínodo realizado em Roma no século IV tem sido apontada pelos católicos como a primeira declaração oficial da Igreja Romana acerca do cânon bíblico. Tal declaração segundo eles precede as resoluções dos concílios africanos de Hipona e Cartago sobre o cânon. 

Contudo tal alegação não resiste a uma pesquisa criteriosa por fontes oficias da Igreja Romana muito menos suporta a uma profunda análise histórica. A suposta lista muito mencionada em diversos sites católicos só pode ser rastreada até sua exposição e referência em outro documento de 5 capítulos atribuído a Gelásio, que foi papa um século depois de Dâmaso. Contudo o documento conhecido como Decreto Gelasiano, é alvo de antigas discussões que questionam sua autenticidade onde é apontado como sendo na verdade uma compilação tardia em inicio do sexto século e sua única cópia preservada encontra-se no Ragyndrudis Codex do meio do século VIII, distante 4 séculos do suposto Sínodo de Roma em 382 onde supostamente Dámaso teria emitido a suposta lista. 

Brooke Foss Westcott, Bispo Anglicano de Durham em sua obra On the Canon, 5a ed., P. 453[citado aqui] afirma que o suposto Decreto Gelasiano, embora tenha sua forma original elaborado no tempo de Gelásio, contudo foi ampliado na Espanha, depois publicado como um decreto do Papa Hormisdas com adições já no sexto século. E, por último, várias vezes alterado nos tempos posteriores.

Isso foi abordado numa edição crítica que foi realizada por Ernst von Dobschutz acerca do referido Decreto Gelasiano onde ele afirma:

A prova de que o documento não é uma real Decretal de Gelásio ou qualquer outro Papa é quase tão decisivo, se não tão surpreendente.(...) Se fosse um decreto oficial de Gelásio, teria sido conhecido e usado por Dionysius Exiguus e Cassiodorus. (...) Assim, essas listas famosas não representam nenhuma ordenança papal, mas são a produção de um estudioso anônimo do século VI.

Em "Listas latinas dos Livros canônicos", o historiador eclesiástico C. H. Turner, ao tratar sobre 'O Concílio Romano sob Dámaso" apesar de crer na autenticidade do documento como a primeira lista conciliar ocidental dos livros canônicos, nos informa que:

"A autenticidade deste Decreto de Dâmaso, obviamente, foi obscurecida pelo fato de que sob os papas posteriores Gelásio e Hormisdas foi reeditado e expandido, e uma lista de livros apócrifos em particular sendo adicionada(...).
Embora C. H. Turner aceite a lista de Dâmaso contida no decreto gelasiano como autêntica, Dobschütz por sua vez em sua análise crítica que investigou 86 manuscritos que trazem o texto, afirma que, "todos os cinco capítulos pertencem ao mesmo trabalho original, que não é um decreto ou uma carta genuína de Dámaso ou Gelásio, mas uma produção literária pseudônima da primeira metade do século VI (entre 519 e 553)".

Conclusão


Então, resumindo a questão sobre a Lista de Dâmaso. Trata-se de um documento em que sua origem é duvidosa e o que lhe confere algum status é ela ser citada no Decreto Gelasiano que por sua vez a crítica textual ao analisar os manuscritos aponta que tal Decreto na realidade é uma compilação posterior. E isso também é citado por F.F Bruce, seu livro pode ser lido (aqui) e abaixo transcrevo a sua referência:

O que é comumente chamado de Decreto Gelasiano sobre livros que devem ser recebidos e não recebidos recebeu o seu nome do Papa Gelásio (492-496). Ele fornece uma lista de livros bíblicos tal como apareciam na Vulgata, com os apócrifos intercalados entre os outros. Em alguns manuscritos, na verdade, é atribuído ao papa Dámaso, como se tivesse sido promulgado por ele no Concílio de Roma em 382. Mas na realidade parece ter sido uma compilação privada redigida em alguma parte de Itália em princípios do século VI” (F.F. Bruce, “The Canon of Scripture”. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 97).

Mas ainda que a tal lista do papa Dâmaso fosse mesmo autêntica, ela não ajuda muito os católicos em sua afirmação sobre ser a primeira ou mais antiga lista oficial de livros canônicos da Igreja Romana. Isso porque a tal lista em diversos textos latinos omitem a segunda carta de Paulo aos Corintios (veja aqui) e (aqui) e de acordo com um Dicionário de Patrologia Católica (veja aqui), o Decreto Gelasiano que cita a lista, traz apenas um dos livros dos Macabeus como canônico:

Dicionário de Patrologia
texto patrologia


Decreto sobre livros. - Além das obras que são dele, pode-se atribuir também o decreto sobre livros apócrifos e canônicos, redigidos ou aprovados em um conselho de setenta e cinco bispos, realizado em Roma em 494. Este decreto, de fato, é o trabalho de Gelásio que contém, em primeiro lugar, o catálogo dos livros do antigo e do novo testamento que a Igreja romana reconhece como canônicos. Difere da do Concílio de Trento apenas em admitir um livro dos Macabeus.[ A. Sevestre, Diocese de Chartres. Dicionário de Patrologia ou Diretório Histórico, Bibliográfico, Analítico e Crítico - Paris ano 1852, pagina 964 do Segundo Volume - negrito acrescentado ].

Ainda que aceitássemos a suposta Lista de Livros Canônicos do Papa Dâmaso como autêntica, poderiam os católicos ainda afirmar que ela é uma lista oficial similar a que foi dada no Concílio de Trento cerca de 12 séculos depois? Creio que não, pois além de apresentar uma compilação diferente da exposta em Trento, outra obra com o Imprimatur da Igreja Romana reconhece que antes de Trento, Roma nunca se pronunciou oficialmente sobre o Cânon:
Segundo a doutrina católica, o critério do cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento. Antes deste havia algumas dúvidas sobre a canonicidade de certos livros Bíblicos, i.e., sobre a sua pertença ao cânon. O Concílio de Trento definitivamente resolveu a questão do cânon do Antigo Testamento. Que isto não havia sido feito anteriormente é evidenciado pela incerteza que persistia até o tempo de Trento
[ New Catholic Encyclopedia, Vol. I (Washington D.C.: Catholic University, 1967), p. 390 - negrito acrescentado] .
Será que a Enciclopédia Católica esqueceu da Lista do Papa Dâmaso em 382? Ou a desconsiderou por ser, digamos, UMA FONTE DUVIDOSA!?


Att: Elisson Freire



Licenciado e Pós-graduado em História. Bacharelando em Teologia. Cristão de tradição batista e acadêmico em apologética cristã...
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